Um livro que recomendo é o da autora Clarissa Pinkola Estés:"Mulheres que correm com os lobos - Mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem".
É um livro que interpreta 19 lendas e histórias antigas, entre elas as de Barba-Azul, Patinho Feio, Sapatinhos Vermelhos e La Llorona. A escritora busca identificar o arquétipo da Mulher Selvagem ou a essência da alma feminina, sua psique instintiva mais profunda e propõe o resgate desse passado longínquo, como forma de atingir a verdadeira libertação.
Publiquei em uma postagem anterior o conto intitulado "A pequena vendedora de fósforos" na versão de Hans Christian Andersen. Esta história é antiga, contada pelo mundo todo e em diferentes versões.
Muita gente vê essas histórias como superficiais e piegas, considero um erro por não perceberem a essência e a profunda "expressão da psique humana" envolta nestes enredos.
Então resolvi partilhar alguns trechos do livro "Mulheres que correm com os lobos", relacionados ao conto "A pequena vendedora de fósforo".
Trechos selecionados do livro:
(....)
Afugentando a fantasia criativa
Essa criança (a meninha vendedora de fósforo) está num ambiente em que as pessoas não se importam com ela.
Se você está num ambiente desses, saia daí.
Essa criança está num meio no qual o que
ela tem, foguinhos em palitos — o início de toda possibilidade criativa — não é
valorizado.
Se você estiver numa aflição semelhante, vire as costas e vá embora.
Essa
criança está numa situação psíquica na qual há poucas opções. Ela se resignou ao seu
"lugar" na vida.
Se isso aconteceu com você, pare de se resignar e saia.
O que a menina dos fósforos deve fazer?
Se os seus instintos estivessem
intactos, suas opções seriam inúmeras. Caminhe até uma outra cidade, esconda-se
numa carroça, abrigue-se num depósito de carvão.
A Mulher Selvagem saberia o que
fazer em seguida, mas a menina dos fósforos não conhece mais a Mulher Selvagem.
A
pequena criança selvagem está morrendo de frio; tudo o que resta dela é uma pessoa
que se movimenta como se em transe.
Estar com pessoas reais que nos aqueçam, que apóiem e elogiem nossa
criatividade, é essencial para a corrente da vida criativa.
Do contrário, acabamos
congeladas.
O ambiente propício é um coro de vozes tanto interiores quanto
exteriores que observa o estado do ser da mulher, tem o cuidado de incentivá-lo e, se
necessário, também a conforta.
Não tenho certeza do número de amigos de que
precisamos, mas decididamente um ou dois que considerem o seu talento, qualquer
que ele seja...
TODA mulher tem direito a um coro de
elogios.
(...)
Para evitar o destino da menininha dos fósforos, há um importante passo que
você deve dar.
Qualquer um que não apóie sua arte, sua vida, não é digno do seu
tempo.
É duro mas é verdade.
Se não pensarmos assim, adotamos direto os trapos da
menina dos fósforos e somos forçadas a viver uma; fração de vida que mata pelo frio
todo pensamento, toda esperança, talentos, escritos, alegrias, projetos e danças.
(...)
A menina dos fósforos não está num ambiente em que possa se desenvolver.
Não há calor, não há gravetos, não há lenha.
Se estivéssemos no seu lugar, o que
poderíamos fazer?
Para começar, poderíamos não acalentar a terra de fantasia que a
menina cria ao acender os fósforos.
Existem três tipos de fantasias.
O primeiro é a
fantasia do prazer: uma espécie de sorvete mental, exclusivamente destinada à
fruição, como quando sonhamos de olhos abertos.
O segundo tipo de fantasia é a
formação intencional de imagens. Essa fantasia é como uma sensação de
planejamento. Ela é usada como veículo para nos levar a agir.
Todos os sucessos —
psicológicos, espirituais, financeiros e criativos — começam com fantasias dessa
natureza.
E existe ainda o terceiro tipo, aquela fantasia que paralisa tudo. É o tipo de
fantasia que impede a ação adequada nos momentos críticos.
Infelizmente, é essa a fantasia criada pela menina dos fósforos.
É uma fantasia
que não tem nada a ver com a realidade. Ela está relacionada, sim, à sensação de que
não há nada a ser feito mesmo e que não faz diferença se mergulhamos numa fantasia
vã.
Às vezes, essa fantasia está na mente da mulher. Às vezes, ela lhe chega numa
garrafa de bebida, numa seringa, ou na falta dessas coisas. Às vezes, a fumaça de um
alucinógeno é o meio de transporte; ou ainda muitos quartos descartáveis,
mobiliados com uma cama e um desconhecido.
(...)
E o que poderá reverter essa situação e restaurar a autoestima e o amor-
próprio?
Temos de descobrir algo muito diferente do que o que a menina dos fósforos tinha. Precisamos levar nossas idéias para um lugar onde elas encontrem apoio.
Esse
é um passo enorme concomitante com a volta ao foco de atenção: encontrar um lugar
propício.
Pouquíssimas mulheres têm condição de criar apenas com o próprio gás.
Precisamos de todos os estímulos que pudermos encontrar.
(...)
Queremos nos colocar
em situações nas quais, como as plantas e as árvores, possamos nos voltar para o sol.
Mas é preciso que haja um sol.
Para conseguir isso temos de nos mexer, não
simplesmente ficar ali sentadas. Temos de fazer alguma coisa para tornar diferente
nossa situação. Se não nos mexermos, estaremos de volta às ruas vendendo fósforos.
(...)
O cuidado e o carinho
levam a mulher de um lugar para outro. Eles são como cereais matinais psíquicos.
A diferença entre o consolo e o cuidado e carinho é a seguinte: se você tem
uma planta que está doente porque vocês a mantém num armário escuro e você lhe
diz palavras tranqüilizadoras, isso é consolo.
Se você tira a planta do armário e a põe
ao sol, lhe dá algo para beber e depois conversa comi ela, isso é cuidado e carinho.
(...)
Você sabe como essas fantasias letais se apresentam, "Um dia
quem sabe..."’’Se ao menos eu tivesse...", "Ele vai mudar..." e "Se eu só aprender a
meu controlar... quando eu realmente estiver pronta, quando eu tiver XYZ suficiente,
quando as crianças crescerem, quando eu me sentir mais segura, quando eu
encontrar outra pessoa e logo que eu...", e assim por diante.
A menininha dos fósforos tem uma avó interna que em vez de gritar com ela
"Acorde! Levante-se! Não importa a que custo, descubra um lugar quente!", prefere
levá-la para uma vida de fantasia, levá-la para o "céu".
Mas o céu não vai ajudar a
Mulher Selvagem, a criança selvagem acuada ou a menininha dos fósforos nessa
situação.
Quando as mulheres estão desconectadas do amor benéfico da
mãe selvagem, elas estão vivendo com o equivalente a uma dieta de subsistência no
mundo exterior.
(...)
Em termos psíquicos, no sentido mais negativo possível, o inverno traz o beijo
da morte — ou seja, uma frieza — a tudo o que toca.
A frieza representa o fim de um
relacionamento. Se você quiser matar alguma coisa, basta agir com frieza. (...)
É essa a situação na psique da
menina dos fósforos.
A menina dos fósforos perambula pelas ruas e implora a desconhecidos que
comprem fósforos dela.
(...)
Temos aqui a menina dos fósforos em extrema necessidade de, mendigando,
oferecendo na realidade algo de valor muito maior — uma luz — do que o valor
recebido em troca — um pêni.
Quer esse "grande valor dado em troca de um valor
menor" esteja dentro da nossa psique, quer ele seja vivenciado por nós no mundo
objetivo, o resultado é o mesmo: maior perda de energia.
(...)
Quando a menina dos fósforos resolve acender os fósforos, ela está usando
seus recursos para fantasiar em vez de usá-los para agir.
Ela queima sua energia de
um modo quase que instantâneo. Isso aparece com evidência na vida da mulher. Ela
está determinada a entrar para a faculdade, mas demora três anos para decidir qual
prefere.(...) Ela sabe que deve
sair, começar, parar, avançar, mas não faz nada disso.
(...)
Esse tipo de angústia de conversão, na qual os problemas ou questões são
minimizados com a entusiástica fantasia de soluções irrealizáveis ou de tempos
melhores, não ataca apenas as mulheres; ele é o maior obstáculo enfrentado pela
humanidade.
(...)
A menina dos fósforos acende outros palitos. Cada fantasia se extingue, e a
criança volta a congelar na neve.
Quando a psique está gelada, a pessoa se volta para
si mesma e para ninguém mais. Ela risca um terceiro fósforo.
Ele é o número três dos
contos de fadas, o número mágico, o ponto no qual algo de novo pode acontecer.
Nesse caso, porém, como a fantasia supera a ação, nada de novo ocorre.
(...)
A avó é tão carinhosa, tão dedicada, e no entanto ela é a morfina final, o último
trago de cicuta. Ela atrai a criança Para o sono da morte. Em seu sentido mais
negativo, esse é o sono da acomodação, o sono do entorpecimento — "Tudo bem, dá
para eu agüentar"; o sono da negação — "Basta que eu olhe para o outro lado".
Esse é
o sono da fantasia maligna, no qual esperamos que todo sofrimento físico desapareça
como que por mágica.
Trata-se de um fato psíquico que,quando a libido ou a energia definha ao
ponto de não mais se ver a respiração no espelho, a natureza da vida-morte-vida
aparece, representada aqui pela avó. É sua tarefa de chegar no momento da morte de alguma coisa, de incubar a alma que deixou sua casca para trás e de cuidar dessa alma até que ela possa renascer.
Essa é a bênção da psique de todo mundo. Mesmo diante de um final doloroso quanto o da menina dos fósforos, há um raio de luz. Quando se reúnem tempo, insatisfação e pressão suficientes, a Mulher selvagem da psique lançará vida nova na mente da mulher, dando-lhe a oportunidade de agir em seu próprio interesse mais uma vez.
Como podemos ver pelo sofrimento envolvido, é muito melhor curar nossa dependência da fantasia do aguardar, com desejo e esperança, que sejamos ressuscitadas dos mortos.
Para quem sente saudade do cheiro da mata, do rio, da chuva, da terra o prefácio do livro recomendo ler:
"Todas nós temos anseio pelo que é selvagem. Existem poucos antídotos aceitos por nossa cultura para esse desejo ardente. Ensinaram-nos a ter vergonha desse tipo de aspiração.
Deixamos crescer o cabelo e o usamos para esconder nossos sentimentos. No entanto, o espectro da Mulher Selvagem ainda nos espreita de dia e de noite. Não importa onde estejamos, a sombra que corre atrás de nós tem decididamente quatro patas."
Clarissa Pinkola Estés
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