sábado, 21 de setembro de 2013

O Matador




Ah, Infância! 

Geralmente as pessoas lembram da sua infância com saudade e costumam comparar com as dos dias de hoje, salientando como os valores foram sendo modificados e esquecidos. 

Hoje as crianças urbanas convivem com muitos limites, como a falta de espaços livres nas ruas para suas brincadeiras. 
As ruas passaram a ser destinadas exclusivamente ao trânsito e aos carros, e as crianças migraram para espaços fechados, isto também devido o medo da violência que assola as grandes cidades.
Uma outra mudança que presenciamos foi a exacerbação do consumismo em nossa sociedade e está atinge de forma assustadora o jeito de brincar dos meninos e meninas.

Percebemos que as formas de brincar de ontem e hoje modificaram consideravelmente, mas saliento que nem todas as mudanças são negativas. Por exemplo, não acredito que ninguém vá argumentar que deveríamos continuar a ensinar as crianças a usar botoque e pedras para matar pequenos animais ou que para educar uma criança seja necessário "dar uma surra para ela aprender a não aprontar mais". 

A história postada nos remeterá aos tempos da minha infância, onde muitas brincadeiras aconteciam nas ruas e nos espaços livres, eram geralmente realizadas em grupos e quase nunca contavam com o controle de um adulto por perto.

Uma questão surge, realmente todas as brincadeiras da nossa época eram mais saudáveis, humanas, alegres e criativas que as atuais?

O autor acerta o alvo e na medida certa fala da sua infância e nos explica o que se pode estar passando na alma de uma criança.


O Matador

De:Wander Piroli
Ilustrações: Odilon Moraes


Naquele tempo, havia muitos quintais e lotes vagos. E era tudo arborizado,tanto em nossa rua, como em todo o bairro.

Cada menino trazia sempre, o seu bodoque no bolso, e, junto com ele, um punhado de munição: cinco ou mais pedras do tamanho de uma jabuticaba.




Quando aparecia uma oportunidade – isto é, o dia todo-, fazíamos pontaria, e alguns pardais, mais do que depressa, iam desistir de viver.


Todos eram bons no bodoque, matavam os seus pardais.
Todos, menos eu.




A pedra passava por cima, por baixo, de lado.  Por mais que caprichasse na pontaria e me aproximasse da vítima, não conseguia atingi-la.




Às vezes, o pardal, nem se dava ao trabalho de fugir. Continuava no mesmo lugar, tinha a impressão de que gozava, na certeza de que não corria nenhum risco.
E não corria mesmo.
Aí vinha a humilhação. Os companheiros debochavam, riam na minha cara.




Eu guardava tudo isto, uma raiva muda, para descontar mais tarde no futebol, distribuindo pisadas e pregos a granel.
Um alívio temporário. O que eu queria mesmo, acima de tudo, era também matar o desgraçado de um pardal.




Muitas vezes ficava no fundo do quintal, sozinho, treinando a pontaria. Punha uma caixa de fósforo numa forquilha de jabuticabeira, mirava bem e – pimba – errava o alvo.
Trocava o bodoque, mudava de posição: a caixinha continuava no mesmo lugar, intacta.

Foi assim, até que, um dia, eu estava no fundo do quintal. Mas sem bodoque, sem nada, desarmado. 
Quando um pardal pousou na quina da coberta.
Não me lembro do que fazia. Sei que estava lá, no fundo do quintal.
Era um pardal como os outros.



Fingi que ia arremessar alguma coisa contra ele, e o pardal permaneceu quieto na quina da coberta. E lá ficou.

Busquei dentro de casa o bodoque e voltei para o quintal. O pardal ainda estava lá, tranqüilo, indiferente.
Escolhi então uma boa pedra, aproximei-me uns passos, agachei-me no chão, fiz tremenda pontaria. Só vi quando o pardal rolou coberta abaixo e caiu do outro lado, onde tinha um terreno vago.

Saí correndo feito um doido, atravessei o portão e olhei de um lado e outro, a fim de ver se havia alguém da turma na rua.
Eu queria que todos vissem. Que todo mundo soubesse que eu matara um pardal. Não havia ninguém na rua.

Continuei correndo, dobrei a esquina e entrei no lote vago, direto no lugar onde eu supunha que estivesse o pardal. O pardal morto. Enfiei a mão no mato, justamente onde o pardal caíra do telhado. Mas aí houve um problema: o pardal estava vivo.



Ou melhor: agonizando, com o seu pequeno coração de pardal, pulsando atrás das penas arrepiadas. Fiquei com ele, piando, na minha mão.
Sem saber o que fazer, desesperado, lancei-o de encontro ao muro. Mas, na afobação em que estava, ele me escapuliu da mão, no meio do mato.






Apanhei-o novamente e joguei-o no muro. Houve apenas um batido surdo e o pardal caiu de vez, inerte. E não piou mais. 





Aliás, piou, sim. E continua piando dentro de mim até hoje.



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